quinta-feira, março 24, 2005

A invenção da garantia

Não se pode dizer, que tudo tenha acontecido de repente...
Quando, uma parte da maioria sucumbiu esmagada pelo peso da estrutura dos andares de cima - num acidente não coberto pelo seguro por via de uma alínea escrita em letra pequenina -, havia muito que alguns diziam ter ouvido o ranger das traves mestras e apontavam falhas; quer na estrutura, quer no terreno em que esta, tinha vindo a ser edificada. Diziam até, que a estrutura cheirava a podre e que a melhor solução seria, deitá-la definitivamente abaixo e construir uma outra de raiz, mais sólida e equilibrada.
A maioria, entretida na azáfama da manutenção da estrutura, não pensava assim, nem de outra maneira qualquer, evitando pôr de vez em causa o chão que pisava e aquilo que julgava ter adquirido!... Preferia, acreditar numa mão fechada cheia de um nada bafiento e num futuro que, de tão distante... lhe parecia brilhante! ...Diligente, insistia em sentir-se senhora de um hipotético império penhorado, desvalorizando o assunto... escolhendo entrementes assobiar distraída, melodias fáceis de entrar no ouvido, emitidas a toda a hora em programas de entretenimento.
Lá no topo, os vendedores de sonhos dourados e de negros pesadelos, loucos que se julgavam donos do mundo... não paravam de sobrecarregar a estrutura, atafulhando os andares de cima com baús cheios de tesouros pesados trocados por bugigangas. Continuavam, a encher estantes com títulos de registos de propriedades, inventados à pressão para legitimar terrenos saqueados. Passavam a vida, a anotar combinações secretas para os cofres que enchiam de diamantes feitos riquezas, e a mandar cunhar moedas segundo a velha receita - que detinham em segredo -, da feitura das fortunas... e, nunca se cansavam de afirmar, que tudo estava no seu lugar!
Por último, perante sérias evidências, chegaram a admitir que o edifício, até podia oscilar... estava, aliás, concebido para oscilar! ...Justamente para não ruir!...
A cada coice de culatra, a cada omoplata partida, a cada sonho desfeito feito drama, a cada tiro no pé, a cada Zé enterrado vivo "por engano"... lá vinham os argumentos da sorte e do azar, da conjectura internacional, da subida ou da descida dos factores determinantes, da baixa produção dos produtores... e, a malta... claro, nem pensava uma segunda vez e chegava até, a não pensar de todo! Trocava o que pensava ter, pela patranha e, uma após outra vez, mantinha - fazendo das tripas coração -, os pilares podres no ar, com o medo que a estrutura lhes caísse em cima e deitassem a perder, tudo aquilo que embora não tivessem - a ser como lhes garantiam -, talvez um dia... viessem a poder... vir a ter!...
Quem sabe... talvez um dia, pudessem também cagar diamantes!...
Alimentada por ilusões, mantida obediente, qual rebanho por medo de lobos maus, temerosa dos castigos eternos... por pecados inventados em sonhos e em noites escuras pintadas por loucos e ditadores, essa ingénua, essa estúpida e dócil de calculista, essa perversa de moralista... essa maioria, tão cruel quanto submissa... aceitava resignada "o seu destino", composto de licenças e multas, de cajadadas que agachada levava no lombo pregadas por pulso forte com frieza! Tudo... na expectativa de manter, a sempre vaga garantia (que se aproximava mais de uma promessa que tornava possível a esperança...), não da vida... mas da segurança! E essa, era dada, ou melhor... vendida, pelos vendedores de sonhos dourados e de negros pesadelos!
...Por dez réis de mel coado, pago, por cada dia que vivia, a uma companhia de seguros instalada num andar de cima, a maioria, que em caso de morte poderia ter a vida paga... assim andava, sem saber porquê, muito mais descansada!
...De pouco valia, àqueles outros (que eram só alguns), tentarem convencer a maioria, a abandonar a estrutura edificada, a serem donos da sua própria vida e guardarem o mel coado e as batatas para darem aos filhos, aos amigos, ou para trocarem com os vizinhos... é que aqueles outros, procurando preservar um mínimo de decência, insistindo na coerência, não lhe davam garantias... e isso, para a maioria, era inconcebível.

sexta-feira, março 11, 2005

Uma viagem de coragem cega

Revoltado o mar como estava durante aquela maré viva, abalava-te as convicções e reforçava-te os medos!
Quiseras... em aflição - dando a quilha à vaga e desfraldando a vela -, esperar dos teus pares as asas da fragata, a coragem e a cumplicidade... mas, a força com que o mar te abalroava, a água salgada que em vendaval te entrava pelo frágil bote adentro e te mirrava os ossos, uivou-te à alma - uma após outra vez - que estás só!
...Teimoso, não ligaste. Não quizes-te acreditar. ...Para o caso tanto se te dava!... Destemido, rumaste a um destino, por rotas que não vêm no mapa. Intrépido, à medida que avançavas vaga acima e te vias a mergulhar na cava que ameaçava destroçar-te, deste por ti abandonado. ...Justamente por gente que por medo abandona o barco e se faz náufrago agarrado a frágeis tábuas, ramos, troncos ou lixo, coisas diversas que por norma se mantêm à tona, enquanto eras assaltado por piratas e apontado como louco, por homens que se diziam de boa fé e que passavam ao largo da tempestade...
Salvo que foras um dia por ti mesmo (aquele outro que de si ninguém conhece)... conheceste-te a acreditar, que o que fosse se veria e, perante a brutalidade daquele mar que ameaçava destroçar-te, conduzir-te em vertigem por abismos escuros com que nem os mais fortes e rijos, os mais maus e duros, os mais corajosos em mar chão... se atrevem a sonhar... tu, avanças-te, agarrado ao leme, do cada vez mais frágil barco, de onde tantos tinham saltado descrentes na chegada ao bom porto que acreditaram desejar.
Sabias (e não te vou perguntar como)... que há mais mar que marinheiros, que depois da tempestade vem a bonança, que enquanto há vida há esperança, que quem almeja sempre alcança e que, a calmaria... apenas serve para retemperar forças. De contrário, seria o marasmo... e a vida, não seria esta utopia neste mar salgado, ora calmo, ora eriçado, que revolve e agita, que mata e cria, para que tudo continue sempre, como até aqui nunca tinha sido!
Sabias... mas duvidavas! Fustigado por ventos de poderosas rajadas, desgastado que estavas das estaladas e dos golpes brutos vaga afora até à crista... dos golpes baixos mar cavado frio e denso adentro...
Querias manter-te à tona... e quando um dia em bolandas, em plena tempestade descobriste que podias fazer disso o porto de chegada... a razão da tua vida... ela, pregou-te a partida e lançou-te para a tonta calmaria de uma estúpida enseada! E foi aí, que, dando conta das feridas, te encontraste esgotado a congeminar novas aventuras.

domingo, março 06, 2005

Uma visão

Extraordinariamente, vi-te partir na chegada!...
...Vinhas em crise, na recta da meta, esgotada da corrida, saturada do medo de não chegar ao fim! O corpo... todo dorido, ameaçava-te a cada passada deixar de obedecer à tua vontade, rendido ao cansaço, pronto a abandonar-te, a deixar-te sozinha na derrota, no caminho...
Olhei-te nos olhos, auscultei-te a expressão que trazias na face e no corpo, e durante momentos que pareceram sem fim... não te reconheci, de deformada que estavas! Espelhavas desanimo, esvaias-te em suor e, ofegante, incapaz de articular palavras... era assim que te queixavas. Esgotado o fôlego, não te ocorria nem conseguirias dizer nada, cansada que estavas dos estratagemas, de quem te punha a correr para apostar no teu adversário, e em redor, um turbilhão avalassador alimentava a tua dor. Um burburinho crescente de vozes e vaias, que fazia de ti uma gazela nervosa em fuga para a meta, consumia-te as últimas calorias. O vassalo impotente... mais uma vez crescia em ti, o galgo e a lebre fundiam-se-te na alma e corrias desesperada, em risco de te rebentarem os bofes, para gáudio de uma multidão que assistia distraída, segura do desfecho, trocando impressões sobre iates, corridas de cavalos de sangue puro, luvas para golfe de pele de pinguim, pitarocas de meninas de dez anos e falos cor de rosa... e tu, concentrada na corrida, avançavas em pedaços que abandonavas dispersos por onde passavas, sempre e cada vez mais em câmara lenta, com o burburinho destorcido pela lentidão, que te ecoava na cabeça, até que... já próximo da meta, no final daquela recta, na iminência do desfalecimento, da queda... deste conta dos sentidos inundados, pelo jorrar do champanhe que escorria nas bancadas delirantes com a vitória que a tua derrota coroara, pelas gargalhadas debochadas numa festa em que tu, eras o bombo! Sentiste-te atingido na alma, pelas graínhas dos bagos de uva a serem cuspidas para a arena, enquanto num olhar de relance sem dó, te vaiavam o lugar...
Não se sabe bem a razão! ...Nem todos respondem da mesma maneira! Mas tu... invadidos os músculos por uma subtância que eu julgo composta por revolta e indignação, cortas-te a meta no teu lugar... e partiste... sem parar, como uma seta, cheia de força, agora sem um queixume... rumo a nenhum lugar!
...Nunca ninguém mais te viu, a engrossar a bancada correndo com a força do crédito, oferecido na partida e retirado na recta da meta, já bem próximo da chegada...

sexta-feira, março 04, 2005

Acossado

Fugia de si próprio por veredas pantanosas, lançava-se em corrida desesperada ao longo de túneis escuros de que não lhes via o fim e, chegava até a sentir-se culpado, por essa fuga em demanda de paz, que havia iniciado desde que se lembrava de ser gente.
Quisera deambular livre, simplesmente. Extasiar-se com a beleza de prados floridos, embrenhar-se em bosques frondosos colhendo frutos e raízes silvestres, com que alimentar o corpo e regalar a alma. Quisera, comungar com a natureza, banhar-se e beber a água em ribeiros cristalinos, encher o íntimo com lampejos de felicidade ouvindo pássaros cantando, sentindo no âmago a vida que pulula e os odores inebriantes que, imaginava, inundariam essas paragens. ...Quisera, por um momento, encontrar-se a sós consigo, guardar no peito raios de luz que dançariam por entre a folhagem e à noite, vencer medos antigos das sombras, num banho de luar contemplando rendido e sereno, o céu estrelado.
Mas a vida, nunca lhe permitira sair do asfalto e os carreirinhos que pisava e não conhecia, os atalhos por onde em desespero se metia, iam todos dar ao ponto de partida!... Um sítio demasiado iluminado, que nunca lhe permitia ver sequer, a lua!
Perturbado... porque para com as obrigações que lhe criavam ele era faltoso, sentia ruir a estrutura e adivinhava-se apontado em cada esquina que dobrava, como um doido de cabeça estouvada em quem não se confia. Chegou até a sentir-se... o porquê dos males existentes e de outros que estarão para vir... e, era por isso, talvez até... só por isso, que almejava fugir. ...Não sabia como, nem para onde. ...Quando nasceu, todos os pedaços de terra tinham sido conquistadas e já tinham dono!
Pregavam-lhe multas, cobravam-lhe por tudo e por nada; o preço de um selo inventado, de um carimbo... uma comissão... e até pela dor que sentia no peito, pelo desgosto... lhe cobravam um imposto!
Mandavam-no ganhar o dinheiro para pagar... e ele, consumia para pagar, produzia para ganhar, ganhava sempre a perder, a toda a hora, em qualquer lugar, de qualquer maneira. Depois... claro, era multado!... Por ir apressado, por chegar atrasado, por não ter conseguido dar mais do que tinha!...
...Fugia de si próprio, envergonhado. Fugia parado. Obrigado a pagar para produzir, a comprar licenças para vender e a cobrar um imposto a quem lhe queria comprar, para depois entregar a quem no fundo geria a sua vida! Pagava para vender, vendia para pagar, pagava para não ser multado e quando o era, por não ter sido capaz de ganhar o suficiente... via a dívida agravada e chegou a ter que pagar com o corpo. Até que um dia... em agonia, sentiu-se forçado a vender fracções da alma ao diabo!... É que esse... pagava bem, e ele... estava cheio de dívidas.

terça-feira, março 01, 2005

A óptica da anti vida

Vem esta a propósito, do uso excessivo de antibióticos. Desta vez, foi uma associação qualquer de farmácias que referiu o facto. Eu, não pude deixar de achar estranho. É que, das duas uma, ou há ainda, uma terceira: Os médicos, estão a receitar antibióticos a mais, as farmácias estão a vender antibióticos sem receita médica ou, ambas as situações se verificam. Em qualquer delas, mais uma vez, quem se lixa é o mexilhão. ...Aquele animal que continua a ser visto como uma peça substituível a qualquer momento e que tem que andar até cair!
Longe vão os tempos em que as gripes eram tratadas com resguardo, cházinhos e canja de galinha! Hoje, a impiedosa máquina montada, exige peças novas ao mínimo sinal de fraqueza! Estar doente, ainda que com gripe, é visto como um sinal de debilidade que ninguém se pode dar ao luxo de deixar transparecer. Por isso, com a ajuda de médicos, cada vez mais eles próprios, peças com a função de manter as máquinas produtoras falantes em pé sem queixumes, recorre-se a patéticas medidas drásticas! E, na fuga para a frente, deste sistema anedótico, vão-se promovendo outras doenças, debilitando o sistema imunitário, sobrecarregando o sistema hepático, irritando o sistema gástrico, promovendo colites, estimulando tosses "secas"... tudo, por sua vez, dominado por mais e mais medicamentos...
Será que a industria farmacêutica tem o poder de pressionar os agentes envolvidos e é dessa forma que, comparando com outros países da Europa, vende mais em Portugal, ou, estamos perante a incompetência, a ignorancia, ou a pura insensibilidade?
Portugal, é o país da Europa que consome por habitante mais antibiótico (e, de largo espectro, à semelhança de outros países do chamado terceiro mundo)!