Ele era uma pessoa normal. Temente a Deus, católico não praticante por tradição, apostólico sem saber porquê, romano porque era latino, baptizado em pequenino e até já casado pela igreja, para não desgostar a família!...
Aprendera entretanto... que no prazer se escondia o pecado, que da dor, da miséria e do sofrimento, vinha a redenção e que, era mais fácil um camelo passar pelo buraco do cú de uma agulha, do que um rico entrar no reino dos céus!... Temer a Deus... enfim!...
Paradoxalmente, tinha imensa pena dos"pobres" e das gentes em agonia... o que fazia com que, à noite, depois de se deitar, de se aconchegar e aquecer, nunca se esquecesse de orar a Deus; pedia, cheio da esperança possível, para que Ele fizesse justamente o que ele não fazia no seu dia a dia... e tornasse mais suportável o peso da cruz ao miserável.
...Esta pretensão (fruto de uma reflexão sonambula), tinha no entanto um senão que tornava este pobre crente num coitado quase arrependido de ter orado e pedido!... É que, ao pedir a Deus para amenizar a dor ao sofredor, sentia-se a dificultar-lhe a entrada no reino a que ele próprio (assim com'assim...) aspirava!
...Um dia, mal acordado, estremunhado, com a alma cheia de culpas e a consciência pesada pelo mal que por bem tinha vindo (ainda que só...) a pensar, resolveu penitenciar-se. Libertar-se da piedade que fazia dele um egoísta e, decidido a disfrutar de prazeres e riquezas, procurou compensar todos de quem tinha tido outrora imensa pena, explorando-os até ao tutano, infligindo-lhes sofrimento, atingindo-os na outra face... tudo, por forma a não terem tanta dificuldade a entrarem no tal reino, de que ele tinha descoberto a chave...
6 comentários:
Mais um belíssimo "retrato", uivo.
Lembrei-me do personagem Susaninha (da Mafalda de Quino) que em certa tira diz qualquer coisa como: "A minha mamã fica tão impressionada com os pobrezinhos que prefere fazer de conta que eles não existem. É tão sensível, a minha mamã!"
Há almas assim, muito sensíveis...
bem visto, meu caro, muito bem visto! é por estas e por outras que o nosso mundo anda cheio de almas tão caridosas! e que Deus os tenha em sua mão! um abraço
Eu acho que a pena e a caridade, haviam de ser substituidas pela fraternidade e solidariedade. Tornava-se muito mais higiénico e poupava-se um trabalhão a Deus!
Sem dúvida! Aliás, caridade devia ser uma palavra (ou um acto) sem razão de existir.
Uma parte da caridade que se vê, por aí, não passa de chauvinismo; cretinice destinada aos coitadinhos, que só "têm o direito" de ser "considerados" enquanto permanecerem "coitadinhso". Se, por acaso, exigirem o respeito pelos seus direitos de seres humanos, então a história muda de figura.
Faz-me lembrar o seguinte episódio, que se passou na minha presença:
Há uns anos, em conversa com um casal conhecido, falou-se, por mero acaso, de racismo. A mulher disse, com o ar de quem diz uma grande coisa, uma coisa sublime:
"Eu não sou racista. Deus me livre! Já basta o desgosto de serem pretos, quanto mais ainda a gente ser racista!"
Acredito que, quem lê isto, fique estupefacto; mas, não tenhamos ilusões, este tipo de "pensamentos" estão generalizados, pela nossa sociedade, acerca das mais variadas coisas, mormente na caridade.
O meu grande problema (o que me causa maiores contratempos) é que eu acho que não tem de ser assim; que isto tem de mudar e pode mudar.
Caro Biranta, quanto à necessidade de mudar, quase todos estamos de acordo. O problema é, mudar o quê e como! Ora, neste aspecto, o meu empenho possível, vai todo inteirinho para a mudança em mim já! Cansei-me de estar à espera de que os grupos se formem e tomem uma atitude. Uma atitude anti racista, anti machista, anti anti imigrantes, anti capitalista selvagem... Descobri que posso mudar, no entretanto, algo, à minha volta e a mim não me apanham a aproveitar e a explorar vergonhosamente a necessidade de uma Ucrâniana ou de um Cabo Verdiano, pelo simples facto de que os considero meus parceiros de viagem por este Universo que mal conheço e hà muito que compreendi que tirando todas as nossas particularidades, somos, como disse, parceiros e os parceiros têm que ser solidários e cúmplices! Nem todos pensam assim! Bem o sabemos! Mas ninguém pode evitar, que eu não explore a fraqueza e a necessidade de outros, que eu os respeite e considere e isso, por pouco que seja, é uma mudança, enquanto outras mais profundas não se tornarem possíveis.
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