Joaquim Pedro de Oliveira Martins, em jeito de conclusão, escreve na última página do seu livro "Sistemas dos mitos religiosos" o seguinte:
A impiedade do coração é a fraqueza no braço e o látego no dorso. Uma sociedade materialista em que os homens limitam a vida aos anos de gozo, perdendo o sentimento do nexo do passado e da responsabilidade para com o provir, abandonando-se ao requinte e ao delitantismo como os atenienses de outro tempo, ou à brutalidade da riqueza com que se paga o fausto e as mulheres, como os romanos do passado; uma sociedade surda pelos gemidos dos que sofrem, pelas vozes dos que clamam, está condenada a cair. No gozo vai-se a força, no optimismo ingénuo pelas «maravilhas da civilização» perde-se o sentimento do que a civilização é, identificando-a exclusivamente com o luxo de artes mercenárias ou com a grandeza de obras apenas utilitárias. Perdido o norte, obliterada a moral, ignota a caridade, a vida torna-se numa luta sem nexo, e cada homem para o seu semelhante, hostis, inimigo, como era o estrangeiro na Roma bárbara. A ciência generalizada, e desmoralizada, é um instrumento grave na mão de homens bestificados: à navalha sucede o revólver, ao revólver os venenos subtis (estriquinina, aconitina), aos venenos quem sabe? o raio produzido por pilhas portáteis, quando a electricidade tiver dito quanto pode. Matar é a regra de todo aquele que não soube viver.
Amplifique-se o quadro que nos oferecem as grandes cidades com os seus exércitos de proletários, as opulências vulgares dos seus ricos, os desvairamentos das suas Bolsas, os seus bandos de facínoras, as suas plebes depravadas, a sua promiscuidade repugnante: amplifique-se, absorvendo a população ainda ingénua dos campos, e talvez não parecam quiméricos os receios de uma nova crise como a da Antiguidade, que também ouvira Platão e obedecera a Marco Aurélio. As oligarquias dos nossos ricos pedirão como as antigas uma espada que as defenda das plebes miseráveis também ávidas de gozar e a espada será um açoite, esporas e um freio - se por ventura houver janízaros bastantes para esmagar as multidões dos novos bárbaros. Chegarão a ver-se na Europa exércitos de berberes, de índios, de turcos assoldados pela França, pela Inglaterra, pela Itália, pela Rússia? O caso não seria novo, nem a solução imprevista.
Mas no dia em que tal sucedesse, a Europa acabaria, e sobre as ruínas de uma civilização algum futuro Dante veria no ondear fúnebre das multidões barbarizadas
Le genti dolorose
Ch' hanno perduto' l ben dello'ntelletto
Oliveira Martins, viveu entre 1845 e 1894.
Este é um espaço sem meta e sem rumo estabelecido. É fruto deste tempo em que cada vez mais de nós sabem muito de pouca coisa, muitos, sabem de tudo pouco e alguns, nos dizem o que havemos de pensar.
sexta-feira, fevereiro 25, 2005
sábado, fevereiro 19, 2005
Um ÁS, só.
Ele era um Ás, só! Não pertencia a qualquer naipe e quando se tratava de ir à mesa, fosse ou não por isso, punham-no logo fora de jogo! Às vezes, em jogadas mais rápidas, via-se com uma carta em cima a passar por instantes despercebido, mas assim que davam por ele, gerava-se uma confusão, diziam todos à uma que a vaza era nula e ele, dava por si num canto da mesa, arredado de jogo com frieza. Descartado...
Atirado, solto com desprezo por dois dedos, via-se num voo curto e rasteiro... fora de jogo, privado da magia que a esperança de poder ganhar nos dá. Mas isso, não era para ele o mais importante. O pior, era mesmo, sentir-se privado da possibilidade de ter esperança em si. De, como qualquer outra carta do baralho, poder vir um dia a servir para alguma coisa! Não estava por isso em questão, ganhar ou não! Muitas vezes tinha assistido a derrotas gloriosas e surpreendentes de outros Ases... cortados por cartas pequenas do naipe da mesa! ...Mas, ainda assim, adivinhava-lhes o prazer de terem feito parte do jogo e lia-lhes na cara o regozijo de terem sido olhados uma e outra vez, por olhos brilhantes, tidos como carta na qual se acredita e isso, por si só, ele achava que bastava, para qualquer um conseguir aceitar uma derrota com a cabeça erguida e manterem a vontade para voltar à mesa, com o mesmo entusiasmo em cada novo jogo. Podia sentir, a vida a subir-lhes medula acima, o bater desarvorado do coração transbordante de uma alegria contagiosa, tocados por dedos hesitantes. Adivinhava-lhes o arrepio da expectativa de poderem vir a ser lançados, numa jogada triunfante.
Por vezes, outras cartas que acabavam por terem pena de o ver fora de jogo, aconselhavam-no a aderir a um naipe! Convidavam-no a aderir ao delas!... As mais desinteressadas, chegavam mesmo a dizer-lhe para aderir a um qualquer... garantiam-lhe que no fundo ia dar ao mesmo... Mas ele, insistindo em ser coerente, fiel ao que sentia, mantinha-se irredutível e afirmava até orgulho em ser um Ás sem naipe, simplesmente. Dizia, alto e bom som, que pouco tinha em comum com os paus, que não estava de acordo com as espadas e que os ouros e as copas, lhe criavam ansiedade...
Ora, como é fácil de entender, a maioria das cartas não aceitavam esta posição e, não satisfeitas com o facto de ele estar quase sempre fora de jogo, faziam de tudo para o verem definitivamente fora do baralho! Aparentemente por isso, não paravam de lhe colocar questões estilo teste americano em que lhe exigiam um sim ou um não, como se tudo fosse passível de ser resumido a uma fórmula, em que se condena ou absolve, se é bom ou mau e as reflexões profundas não servissem para nada.
Um dia, saturadas das respostas que ia dando e que normalmente começavam por: Depende... , baniram-no definitivamente do jogo por decreto que instituía a existência exclusiva de quatro naipes!
Às primeiras, o nosso Ás só, sentiu-se sozinho. Mas, à medida que se foi erguendo e se fez ao caminho, foi encontrando outras cartas sem naipe, de cores que nem conhecia e que estavam interessadas em saber, do que é que depende... a vida de cada dia. Ases e Reis, Manilhas e Duques, Ternos e Quinas, aos magotes... cartas, que nunca tinham estado na manga e que sem que se tivessem dado conta jogavam um jogo em que todas eram indispensáveis.
Bem vistas as coisas, nem todo o losango é ouro, não há espada que sempre corte e há azares... que vêm por sorte!
Atirado, solto com desprezo por dois dedos, via-se num voo curto e rasteiro... fora de jogo, privado da magia que a esperança de poder ganhar nos dá. Mas isso, não era para ele o mais importante. O pior, era mesmo, sentir-se privado da possibilidade de ter esperança em si. De, como qualquer outra carta do baralho, poder vir um dia a servir para alguma coisa! Não estava por isso em questão, ganhar ou não! Muitas vezes tinha assistido a derrotas gloriosas e surpreendentes de outros Ases... cortados por cartas pequenas do naipe da mesa! ...Mas, ainda assim, adivinhava-lhes o prazer de terem feito parte do jogo e lia-lhes na cara o regozijo de terem sido olhados uma e outra vez, por olhos brilhantes, tidos como carta na qual se acredita e isso, por si só, ele achava que bastava, para qualquer um conseguir aceitar uma derrota com a cabeça erguida e manterem a vontade para voltar à mesa, com o mesmo entusiasmo em cada novo jogo. Podia sentir, a vida a subir-lhes medula acima, o bater desarvorado do coração transbordante de uma alegria contagiosa, tocados por dedos hesitantes. Adivinhava-lhes o arrepio da expectativa de poderem vir a ser lançados, numa jogada triunfante.
Por vezes, outras cartas que acabavam por terem pena de o ver fora de jogo, aconselhavam-no a aderir a um naipe! Convidavam-no a aderir ao delas!... As mais desinteressadas, chegavam mesmo a dizer-lhe para aderir a um qualquer... garantiam-lhe que no fundo ia dar ao mesmo... Mas ele, insistindo em ser coerente, fiel ao que sentia, mantinha-se irredutível e afirmava até orgulho em ser um Ás sem naipe, simplesmente. Dizia, alto e bom som, que pouco tinha em comum com os paus, que não estava de acordo com as espadas e que os ouros e as copas, lhe criavam ansiedade...
Ora, como é fácil de entender, a maioria das cartas não aceitavam esta posição e, não satisfeitas com o facto de ele estar quase sempre fora de jogo, faziam de tudo para o verem definitivamente fora do baralho! Aparentemente por isso, não paravam de lhe colocar questões estilo teste americano em que lhe exigiam um sim ou um não, como se tudo fosse passível de ser resumido a uma fórmula, em que se condena ou absolve, se é bom ou mau e as reflexões profundas não servissem para nada.
Um dia, saturadas das respostas que ia dando e que normalmente começavam por: Depende... , baniram-no definitivamente do jogo por decreto que instituía a existência exclusiva de quatro naipes!
Às primeiras, o nosso Ás só, sentiu-se sozinho. Mas, à medida que se foi erguendo e se fez ao caminho, foi encontrando outras cartas sem naipe, de cores que nem conhecia e que estavam interessadas em saber, do que é que depende... a vida de cada dia. Ases e Reis, Manilhas e Duques, Ternos e Quinas, aos magotes... cartas, que nunca tinham estado na manga e que sem que se tivessem dado conta jogavam um jogo em que todas eram indispensáveis.
Bem vistas as coisas, nem todo o losango é ouro, não há espada que sempre corte e há azares... que vêm por sorte!
quarta-feira, fevereiro 16, 2005
Guia prático para a construção de um moderno viveiro de marginais
1º - Escolher um terreno em que ninguém queira viver. Um sítio agreste e por isso barato, nos subúrbios de uma grande cidade.
2º - Construir lá, com pouca despesa, umas torres sem graça. Adicione-se um parque infantil com dois balouços e um bocado de areia. Não esquecer a escola para compor o complexo.
3º - Procurar famílias problemáticas, desintegradas, debilitadas ao nível físico e mental, económico e social, famílias... sem estrutura de recurso, em situações periclitantes que habitem bairros degradados, situados em terrenos com "potencial", cobiçados por construtores pontas de lança de instituições de crédito e bem relacionados com Câmaras Municipais e afins.
4º - Seleccionar os desgraçados por ordem e, em tempo útil, atribuir-lhes uma dessas casas estipulando-lhe uma renda dita simbólica.
5º - Convidar os órgãos de comunicação social para fazerem a cobertura da cerimónia oficial, em que, com pompa e circunstância, os representantes do poder político entregam as chaves aos ditos desgraçados. Promova-se uma entrevista a uma velha desdentada à qual seja ainda possível arrancar um pequeno olhar de esperança e um agradecimento convicto.
6º - Uma vez os desgraçados instalados, manter-lhes todas as premissas que os conduziram à degradação e, em lume brando, esperar que as crianças cresçam.
7º - Adicionar uma pitada de crispação dos habitantes da Vila próxima, em consequência de um ou outro acidente (vulgo roubo) que envolva pequenos grupos desses jovens sem referencias e educação e que se arrogam ao direito de possuir também, telemóveis, ténis ou roupa de marca...inconscientemente esperançados que esses artefactos, lhes permitam "ser como os outros", passar despercebidos e apagar um carimbo que trazem na testa desde que nasceram.
8º - Esperar que a revolta cresça... nos invasores e nos invadidos, nos assaltantes e nos assaltados... até que abra brecha.
9º - Juntar uns filmes de merda frequentes, ao alcançe de todos, decorar com o comércio de armas, drogas lícitas e ilícitas que engorda gente insuspeita que passa a vida a bater com a mão no peito sem dizer "mea culpa" e levar à mesa... regado com muito álcool ao qual é só puxar o fogo.
N.B. - Esta receita, deve ser confeccionada com muito cuidado, para não sair tudo queimado.
2º - Construir lá, com pouca despesa, umas torres sem graça. Adicione-se um parque infantil com dois balouços e um bocado de areia. Não esquecer a escola para compor o complexo.
3º - Procurar famílias problemáticas, desintegradas, debilitadas ao nível físico e mental, económico e social, famílias... sem estrutura de recurso, em situações periclitantes que habitem bairros degradados, situados em terrenos com "potencial", cobiçados por construtores pontas de lança de instituições de crédito e bem relacionados com Câmaras Municipais e afins.
4º - Seleccionar os desgraçados por ordem e, em tempo útil, atribuir-lhes uma dessas casas estipulando-lhe uma renda dita simbólica.
5º - Convidar os órgãos de comunicação social para fazerem a cobertura da cerimónia oficial, em que, com pompa e circunstância, os representantes do poder político entregam as chaves aos ditos desgraçados. Promova-se uma entrevista a uma velha desdentada à qual seja ainda possível arrancar um pequeno olhar de esperança e um agradecimento convicto.
6º - Uma vez os desgraçados instalados, manter-lhes todas as premissas que os conduziram à degradação e, em lume brando, esperar que as crianças cresçam.
7º - Adicionar uma pitada de crispação dos habitantes da Vila próxima, em consequência de um ou outro acidente (vulgo roubo) que envolva pequenos grupos desses jovens sem referencias e educação e que se arrogam ao direito de possuir também, telemóveis, ténis ou roupa de marca...inconscientemente esperançados que esses artefactos, lhes permitam "ser como os outros", passar despercebidos e apagar um carimbo que trazem na testa desde que nasceram.
8º - Esperar que a revolta cresça... nos invasores e nos invadidos, nos assaltantes e nos assaltados... até que abra brecha.
9º - Juntar uns filmes de merda frequentes, ao alcançe de todos, decorar com o comércio de armas, drogas lícitas e ilícitas que engorda gente insuspeita que passa a vida a bater com a mão no peito sem dizer "mea culpa" e levar à mesa... regado com muito álcool ao qual é só puxar o fogo.
N.B. - Esta receita, deve ser confeccionada com muito cuidado, para não sair tudo queimado.
terça-feira, fevereiro 15, 2005
Um mundo colorido
Ao alcance de um botão, temos o mundo em resumo, na mão. ...Em documentários, reportagens, notícias breves. E, temos até o direito a espreitar a opinião padrão que nos aparece pré cozinhada, embalada, pronta a cair no prato, a ser engolida num trago e digerida num ápice com a tranquilidade de quem sente que o caso fica entregue e resolvido!...
Temos de tudo ao alcance; consoante a hora, o programa, o canal... Podemos entrar casa a dentro da família degradada e com falta de estrutura. Podemos olhar a miséria em grande plano... ver o tecto que abateu! Podemos imaginar o frio que alí habita... que regela e trás ranhosas as crianças mal criadas... entregues à sorte, à impotência/incompetência de um casal... que ele próprio... desde sempre... precisava, de uma restruturação geral, mas que, entretanto, por várias faltas e excessos, vive débil e dramáticamente agarrado a um "rendimento mínimo", graças à boa vontade de uma assistente social, de um ministério, de um sistema que teima em mascarar sintomas preciosos!...
... Podemos ouvir os testemunhos de uns vizinhos que lhes dão couves, ou de um padre que ainda num outro dia lhes deu cobertores. Podemos ter pena. Podemos até... zarpar para outro canal!...
...Pode parecer que temos tudo... falta-nos o essencial...
Temos de tudo ao alcance; consoante a hora, o programa, o canal... Podemos entrar casa a dentro da família degradada e com falta de estrutura. Podemos olhar a miséria em grande plano... ver o tecto que abateu! Podemos imaginar o frio que alí habita... que regela e trás ranhosas as crianças mal criadas... entregues à sorte, à impotência/incompetência de um casal... que ele próprio... desde sempre... precisava, de uma restruturação geral, mas que, entretanto, por várias faltas e excessos, vive débil e dramáticamente agarrado a um "rendimento mínimo", graças à boa vontade de uma assistente social, de um ministério, de um sistema que teima em mascarar sintomas preciosos!...
... Podemos ouvir os testemunhos de uns vizinhos que lhes dão couves, ou de um padre que ainda num outro dia lhes deu cobertores. Podemos ter pena. Podemos até... zarpar para outro canal!...
...Pode parecer que temos tudo... falta-nos o essencial...
domingo, fevereiro 13, 2005
Amor ou talvez não... como sempre
Ia ele atarefado, no meio da multidão, quando o móvel tocou.
- Tou tou?...
Do outro lado, uma voz macia, com duas palavras, abalou-lhe toda a estrutura:
- Olá, "Fontanela"...
Estremeceu! ... "Fontanela" era o nome que usava num blog que mantinha e, fosse lá pelo que fosse, nunca tinha contado essa parte da vida a ninguém!... Mal refeito da surpresa, respondeu:
- "Fontanela"?!... Mas... quem é que fala?!... Com quem é que quer falar?
- Ora... deixa-te disso! Claro que é contigo que quero falar e pouco me importa o teu nome! Sabes ou não que eu existo, que comungo das mesmas ideias e das mesmas preocupações?... Tens ou não a noção que estamos muito próximos um do outro, que somos células do embrião que se está a formar?...
Por breves momentos que lhe pareceram eternos, ficou sem saber o que dizer... talvez por isso, numa tentativa de ganhar tempo, insistiu:
- Deve aquí haver um engano... para que número é que quer falar?
Mas a mulher, com voz doce que a ele lhe parecia estranhamente familiar, não lhe abria uma pequena brecha por onde se pudesse escapar, antes o encurralava e obrigava, a encarar que sabia perfeitamente com quem estava a falar. De resto, grande parte do dia pensava nela, muito do que dizia, tinha a ver com o que ela escrevia e, já não sabia, como se tornara possível uma tal empatia com alguém que não conhecia. Estaria ele contagiado com uma peste moderna, propagada através da net que se instalava e desenvolvia no terreno fértil do imaginário dos homens sós? Mas a voz doce não lhe deu tréguas e lançou um desafio demolidor:
- Um doce... em troca do meu nome...
Ele, engoliu em seco. Pelo absurdo da situação, mas, acima de tudo pela íntima convicção de que ela, era a "Ilha submersa", a mulher a quem tinha vindo a seguir com minúcia tudo o que ela teclava e com quem frequentemente trocava comentários! Á partida não tinha qualquer lógica!... De qualquer modo, num impulso sem explicação, como num sonho, arriscou:
- És a "Ilha submersa"...
De imediato, a chamada caíu e ele, num gesto largo, afastou o telefone do ouvido e olhando desolado em redor a multidão atarefada, viu surgir direita a ele, uma mulher com um telefone na mão, que se aproximou bem pertinho e insinuante lhe disse:
- Bingo!
- Tou tou?...
Do outro lado, uma voz macia, com duas palavras, abalou-lhe toda a estrutura:
- Olá, "Fontanela"...
Estremeceu! ... "Fontanela" era o nome que usava num blog que mantinha e, fosse lá pelo que fosse, nunca tinha contado essa parte da vida a ninguém!... Mal refeito da surpresa, respondeu:
- "Fontanela"?!... Mas... quem é que fala?!... Com quem é que quer falar?
- Ora... deixa-te disso! Claro que é contigo que quero falar e pouco me importa o teu nome! Sabes ou não que eu existo, que comungo das mesmas ideias e das mesmas preocupações?... Tens ou não a noção que estamos muito próximos um do outro, que somos células do embrião que se está a formar?...
Por breves momentos que lhe pareceram eternos, ficou sem saber o que dizer... talvez por isso, numa tentativa de ganhar tempo, insistiu:
- Deve aquí haver um engano... para que número é que quer falar?
Mas a mulher, com voz doce que a ele lhe parecia estranhamente familiar, não lhe abria uma pequena brecha por onde se pudesse escapar, antes o encurralava e obrigava, a encarar que sabia perfeitamente com quem estava a falar. De resto, grande parte do dia pensava nela, muito do que dizia, tinha a ver com o que ela escrevia e, já não sabia, como se tornara possível uma tal empatia com alguém que não conhecia. Estaria ele contagiado com uma peste moderna, propagada através da net que se instalava e desenvolvia no terreno fértil do imaginário dos homens sós? Mas a voz doce não lhe deu tréguas e lançou um desafio demolidor:
- Um doce... em troca do meu nome...
Ele, engoliu em seco. Pelo absurdo da situação, mas, acima de tudo pela íntima convicção de que ela, era a "Ilha submersa", a mulher a quem tinha vindo a seguir com minúcia tudo o que ela teclava e com quem frequentemente trocava comentários! Á partida não tinha qualquer lógica!... De qualquer modo, num impulso sem explicação, como num sonho, arriscou:
- És a "Ilha submersa"...
De imediato, a chamada caíu e ele, num gesto largo, afastou o telefone do ouvido e olhando desolado em redor a multidão atarefada, viu surgir direita a ele, uma mulher com um telefone na mão, que se aproximou bem pertinho e insinuante lhe disse:
- Bingo!
terça-feira, fevereiro 08, 2005
Pais desnaturados
Num sítio escuro, estreito e dito agora sem saída, vive uma criança perdida há já muito abandonada, por quem em tempos lhe dissera que a amava e a defenderia, dos papões que sem pejo lhe criava...
Tudo começou... quando pérfidos senhores da guerra, através de um velho processo de conquista, se tornaram donos da terra em que vivia, esculpindo-lhe desde logo na alma monstruosos inimigos, contra os quais lhe semearam na mente ódios cegos sem outra saída que a guerra, ao mesmo tempo que lhe impuseram a vontade que assumiram, de protegê-la de vindouros e terríveis perigos!
Feitos assim senhores de condados inventados a fio de espada, tornados novos usuários de velhos castelos, pediram-lhe em troca ajuda com a sua contribuição, para a defesa do condado... Uns produtos da horta, umas saquinhas de grãos, um tonel de vinho, um ou outro porquinho... produtos, para levar à mesa, que lhes dessem forças para a defesa...
Mais tarde, pedir-lhe-iam a própria vida, em lutas que promoviam contra esses monstros por eles criados... e a criança, vendo-se forçada a encontrar a coragem para responder ao solicitado, deu por si a subir à muralha e a dar o peito à flecha!
Depois, aproveitando as artes que os seus antepassados lhe tinha ensinado, puseram-na a fabricar latas e elmos com que a vieram a fardar, pesadas lanças e espadas mágicas com que a vieram a armar, tornando-a capaz de vencer dragões e de cortar de um só golpe, várias cabeças de um inimigo que de outra forma... nunca ninguém teria imaginado.
Umas vezes a pé, outras, montada num cavalo alado ou embarcada numa caravela, a criança, protegida por um Deus até aí desconhecido, partiu para toda a parte por medo, em busca de paz e salvação!
Foi assim que venceu e matou monstros arrepiantes, infiéis com pactos com o Diabo... gente estranha com a cabeça envolvida por turbantes, selvagens parecidos com os homens, que choravam como os macacos e que desventravam grávidas e comiam crianças... espetou bandeiras em chão longínquo, fez das tripas coração comendo o pão de cada dia retirado de saques sagrados com que cumpriu a sua missão de trazer tesouros... riquezas, que alimentaram a expansão de um novo Império! Levava na bagagem a fé, um evangelho com novas leis e rituais que tornavam possível oferecer o perdão a bárbaros e infiéis, libertá-los de velhos mitos, oferecer-lhes um Deus verdadeiro e a própria civilização...
Disseram-lhe na partida, para matar à vontade... que assim se conquista a vida...
Hoje, os ventos mudaram e muitos dos que a aclamaram são agora quem a condena! Os senhores da guerra, entretanto, foram saindo de mansinho, adoptaram novos discursos, outras roupagens, alugaram os condados a estrangeiros endinheirados, guardaram o produto dos saques em paraísos fiscais e partiram! Hoje, são eles que andam mundo fora, umas vezes na neve... outras em paraísos tropicais... Para trás, ficou uma criança abandonada num beco escuro, a lamber feridas da culpa, de costas voltadas para a saída...
Tudo começou... quando pérfidos senhores da guerra, através de um velho processo de conquista, se tornaram donos da terra em que vivia, esculpindo-lhe desde logo na alma monstruosos inimigos, contra os quais lhe semearam na mente ódios cegos sem outra saída que a guerra, ao mesmo tempo que lhe impuseram a vontade que assumiram, de protegê-la de vindouros e terríveis perigos!
Feitos assim senhores de condados inventados a fio de espada, tornados novos usuários de velhos castelos, pediram-lhe em troca ajuda com a sua contribuição, para a defesa do condado... Uns produtos da horta, umas saquinhas de grãos, um tonel de vinho, um ou outro porquinho... produtos, para levar à mesa, que lhes dessem forças para a defesa...
Mais tarde, pedir-lhe-iam a própria vida, em lutas que promoviam contra esses monstros por eles criados... e a criança, vendo-se forçada a encontrar a coragem para responder ao solicitado, deu por si a subir à muralha e a dar o peito à flecha!
Depois, aproveitando as artes que os seus antepassados lhe tinha ensinado, puseram-na a fabricar latas e elmos com que a vieram a fardar, pesadas lanças e espadas mágicas com que a vieram a armar, tornando-a capaz de vencer dragões e de cortar de um só golpe, várias cabeças de um inimigo que de outra forma... nunca ninguém teria imaginado.
Umas vezes a pé, outras, montada num cavalo alado ou embarcada numa caravela, a criança, protegida por um Deus até aí desconhecido, partiu para toda a parte por medo, em busca de paz e salvação!
Foi assim que venceu e matou monstros arrepiantes, infiéis com pactos com o Diabo... gente estranha com a cabeça envolvida por turbantes, selvagens parecidos com os homens, que choravam como os macacos e que desventravam grávidas e comiam crianças... espetou bandeiras em chão longínquo, fez das tripas coração comendo o pão de cada dia retirado de saques sagrados com que cumpriu a sua missão de trazer tesouros... riquezas, que alimentaram a expansão de um novo Império! Levava na bagagem a fé, um evangelho com novas leis e rituais que tornavam possível oferecer o perdão a bárbaros e infiéis, libertá-los de velhos mitos, oferecer-lhes um Deus verdadeiro e a própria civilização...
Disseram-lhe na partida, para matar à vontade... que assim se conquista a vida...
Hoje, os ventos mudaram e muitos dos que a aclamaram são agora quem a condena! Os senhores da guerra, entretanto, foram saindo de mansinho, adoptaram novos discursos, outras roupagens, alugaram os condados a estrangeiros endinheirados, guardaram o produto dos saques em paraísos fiscais e partiram! Hoje, são eles que andam mundo fora, umas vezes na neve... outras em paraísos tropicais... Para trás, ficou uma criança abandonada num beco escuro, a lamber feridas da culpa, de costas voltadas para a saída...
segunda-feira, fevereiro 07, 2005
quinta-feira, fevereiro 03, 2005
quarta-feira, fevereiro 02, 2005
O meu sentir à família Cabral
Ele nunca foi presidente de coisa nenhuma e a palavra que botava, raramente ia além do seu quintal, desde sempre modesto. Nunca lhe deram medalhas... todas as batalhas que ganhou, ganhou-as em recato e de tão pouco espalhafato dir-se-ia, que o voto que teve na vida foi quase nulo.
Passou-lhe ao lado, essa coisa de ser um profissional de sucesso, investiu quanto tinha em ser Homem e nunca entendeu muito bem o que eram essas cruzes que alguns ostentam ao peito... as rosa cruzes, as cruzes de Malta as cruzes da ordem do cavaleiro...
Ele tinha uma cruz, que carregava em silêncio e sem queixume e bem vistas as coisas, ninguém sabia se, ou quanto, ela lhe pesava.
Escolhera há muito, ser membro inteiro daquela família, amigo e companheiro, cúmplice até à medula... e isso, pouco a pouco, foi-se tornando incompatível com a realização profissional e com as conquistas noutros horizontes com que os homens crescidos sonham...
Viam-no, a fazer quase nada! ... As compras para casa, as visitas regulares ao centro de saúde, uma ou outra incursão ao mundo da assistência social em busca de sentido e de justiça... sempre com a sua Paulinha! A sua filha, a sua grande amiga e companheira com que se aventurava culinária afora, viajando pelo mundo dos sabores, uns mais, outros menos exóticos... na invenção de uma doçaria... de uns salgados com o toque de uma especiaria...
Quando se tornava possível iam à pesca ( o mar, para esta família sempre se tornou um pouco longe!... )! A Paulinha, embora já adulta, não tinha a destreza suficiente para colocar o isco no anzol... e ele ajudava... explicava mais uma vez como se fazia... Depois, com a cana na mão, falavam da vida, do mar, do céu e sabe-se lá, do que mais! A Paulinha, escutava com atenção e ia entendendo o mundo, melhor que muita gente que há por aí com o peito cheio de gran cruzes e medalhas! Falar, falava com mais dificuldade, porque lhe custa articular as palavras, mas ele, compreendia-a na perfeição.
Talvez, que se ela não tivesse nascido com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, nunca se tivessem entendido tão bem e muitos dos momentos felizes que passaram não tivessem acontecido!...
Amanhã, o Srº Cabral, tem direito a funeral! Ninguém lhe vai erigir uma estátua e adivinho que não vai ficar com o nome na História... mas no meu entender, o Srº Cabral, foi um herói maior que muitos, que ostentam as tais cruzes ao peito e têm direito a estátua... na verdade, não são estes que fazem a História! Ela, é feita, por muitos homens como o Srº Cabral, que nunca ganharam uma medalha nem quizeram lutar por isso... a sua luta, era outra!...
Passou-lhe ao lado, essa coisa de ser um profissional de sucesso, investiu quanto tinha em ser Homem e nunca entendeu muito bem o que eram essas cruzes que alguns ostentam ao peito... as rosa cruzes, as cruzes de Malta as cruzes da ordem do cavaleiro...
Ele tinha uma cruz, que carregava em silêncio e sem queixume e bem vistas as coisas, ninguém sabia se, ou quanto, ela lhe pesava.
Escolhera há muito, ser membro inteiro daquela família, amigo e companheiro, cúmplice até à medula... e isso, pouco a pouco, foi-se tornando incompatível com a realização profissional e com as conquistas noutros horizontes com que os homens crescidos sonham...
Viam-no, a fazer quase nada! ... As compras para casa, as visitas regulares ao centro de saúde, uma ou outra incursão ao mundo da assistência social em busca de sentido e de justiça... sempre com a sua Paulinha! A sua filha, a sua grande amiga e companheira com que se aventurava culinária afora, viajando pelo mundo dos sabores, uns mais, outros menos exóticos... na invenção de uma doçaria... de uns salgados com o toque de uma especiaria...
Quando se tornava possível iam à pesca ( o mar, para esta família sempre se tornou um pouco longe!... )! A Paulinha, embora já adulta, não tinha a destreza suficiente para colocar o isco no anzol... e ele ajudava... explicava mais uma vez como se fazia... Depois, com a cana na mão, falavam da vida, do mar, do céu e sabe-se lá, do que mais! A Paulinha, escutava com atenção e ia entendendo o mundo, melhor que muita gente que há por aí com o peito cheio de gran cruzes e medalhas! Falar, falava com mais dificuldade, porque lhe custa articular as palavras, mas ele, compreendia-a na perfeição.
Talvez, que se ela não tivesse nascido com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, nunca se tivessem entendido tão bem e muitos dos momentos felizes que passaram não tivessem acontecido!...
Amanhã, o Srº Cabral, tem direito a funeral! Ninguém lhe vai erigir uma estátua e adivinho que não vai ficar com o nome na História... mas no meu entender, o Srº Cabral, foi um herói maior que muitos, que ostentam as tais cruzes ao peito e têm direito a estátua... na verdade, não são estes que fazem a História! Ela, é feita, por muitos homens como o Srº Cabral, que nunca ganharam uma medalha nem quizeram lutar por isso... a sua luta, era outra!...
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