Num sítio escuro, estreito e dito agora sem saída, vive uma criança perdida há já muito abandonada, por quem em tempos lhe dissera que a amava e a defenderia, dos papões que sem pejo lhe criava...
Tudo começou... quando pérfidos senhores da guerra, através de um velho processo de conquista, se tornaram donos da terra em que vivia, esculpindo-lhe desde logo na alma monstruosos inimigos, contra os quais lhe semearam na mente ódios cegos sem outra saída que a guerra, ao mesmo tempo que lhe impuseram a vontade que assumiram, de protegê-la de vindouros e terríveis perigos!
Feitos assim senhores de condados inventados a fio de espada, tornados novos usuários de velhos castelos, pediram-lhe em troca ajuda com a sua contribuição, para a defesa do condado... Uns produtos da horta, umas saquinhas de grãos, um tonel de vinho, um ou outro porquinho... produtos, para levar à mesa, que lhes dessem forças para a defesa...
Mais tarde, pedir-lhe-iam a própria vida, em lutas que promoviam contra esses monstros por eles criados... e a criança, vendo-se forçada a encontrar a coragem para responder ao solicitado, deu por si a subir à muralha e a dar o peito à flecha!
Depois, aproveitando as artes que os seus antepassados lhe tinha ensinado, puseram-na a fabricar latas e elmos com que a vieram a fardar, pesadas lanças e espadas mágicas com que a vieram a armar, tornando-a capaz de vencer dragões e de cortar de um só golpe, várias cabeças de um inimigo que de outra forma... nunca ninguém teria imaginado.
Umas vezes a pé, outras, montada num cavalo alado ou embarcada numa caravela, a criança, protegida por um Deus até aí desconhecido, partiu para toda a parte por medo, em busca de paz e salvação!
Foi assim que venceu e matou monstros arrepiantes, infiéis com pactos com o Diabo... gente estranha com a cabeça envolvida por turbantes, selvagens parecidos com os homens, que choravam como os macacos e que desventravam grávidas e comiam crianças... espetou bandeiras em chão longínquo, fez das tripas coração comendo o pão de cada dia retirado de saques sagrados com que cumpriu a sua missão de trazer tesouros... riquezas, que alimentaram a expansão de um novo Império! Levava na bagagem a fé, um evangelho com novas leis e rituais que tornavam possível oferecer o perdão a bárbaros e infiéis, libertá-los de velhos mitos, oferecer-lhes um Deus verdadeiro e a própria civilização...
Disseram-lhe na partida, para matar à vontade... que assim se conquista a vida...
Hoje, os ventos mudaram e muitos dos que a aclamaram são agora quem a condena! Os senhores da guerra, entretanto, foram saindo de mansinho, adoptaram novos discursos, outras roupagens, alugaram os condados a estrangeiros endinheirados, guardaram o produto dos saques em paraísos fiscais e partiram! Hoje, são eles que andam mundo fora, umas vezes na neve... outras em paraísos tropicais... Para trás, ficou uma criança abandonada num beco escuro, a lamber feridas da culpa, de costas voltadas para a saída...
2 comentários:
Vim por aquí ,de regresso da mesa do costume, e passei um bom bocado com o seu excelente blogue.
Parabéns
Bem vindo! Obrigado! Vamos encontrar-nos mais vezes.
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