Ele era um Ás, só! Não pertencia a qualquer naipe e quando se tratava de ir à mesa, fosse ou não por isso, punham-no logo fora de jogo! Às vezes, em jogadas mais rápidas, via-se com uma carta em cima a passar por instantes despercebido, mas assim que davam por ele, gerava-se uma confusão, diziam todos à uma que a vaza era nula e ele, dava por si num canto da mesa, arredado de jogo com frieza. Descartado...
Atirado, solto com desprezo por dois dedos, via-se num voo curto e rasteiro... fora de jogo, privado da magia que a esperança de poder ganhar nos dá. Mas isso, não era para ele o mais importante. O pior, era mesmo, sentir-se privado da possibilidade de ter esperança em si. De, como qualquer outra carta do baralho, poder vir um dia a servir para alguma coisa! Não estava por isso em questão, ganhar ou não! Muitas vezes tinha assistido a derrotas gloriosas e surpreendentes de outros Ases... cortados por cartas pequenas do naipe da mesa! ...Mas, ainda assim, adivinhava-lhes o prazer de terem feito parte do jogo e lia-lhes na cara o regozijo de terem sido olhados uma e outra vez, por olhos brilhantes, tidos como carta na qual se acredita e isso, por si só, ele achava que bastava, para qualquer um conseguir aceitar uma derrota com a cabeça erguida e manterem a vontade para voltar à mesa, com o mesmo entusiasmo em cada novo jogo. Podia sentir, a vida a subir-lhes medula acima, o bater desarvorado do coração transbordante de uma alegria contagiosa, tocados por dedos hesitantes. Adivinhava-lhes o arrepio da expectativa de poderem vir a ser lançados, numa jogada triunfante.
Por vezes, outras cartas que acabavam por terem pena de o ver fora de jogo, aconselhavam-no a aderir a um naipe! Convidavam-no a aderir ao delas!... As mais desinteressadas, chegavam mesmo a dizer-lhe para aderir a um qualquer... garantiam-lhe que no fundo ia dar ao mesmo... Mas ele, insistindo em ser coerente, fiel ao que sentia, mantinha-se irredutível e afirmava até orgulho em ser um Ás sem naipe, simplesmente. Dizia, alto e bom som, que pouco tinha em comum com os paus, que não estava de acordo com as espadas e que os ouros e as copas, lhe criavam ansiedade...
Ora, como é fácil de entender, a maioria das cartas não aceitavam esta posição e, não satisfeitas com o facto de ele estar quase sempre fora de jogo, faziam de tudo para o verem definitivamente fora do baralho! Aparentemente por isso, não paravam de lhe colocar questões estilo teste americano em que lhe exigiam um sim ou um não, como se tudo fosse passível de ser resumido a uma fórmula, em que se condena ou absolve, se é bom ou mau e as reflexões profundas não servissem para nada.
Um dia, saturadas das respostas que ia dando e que normalmente começavam por: Depende... , baniram-no definitivamente do jogo por decreto que instituía a existência exclusiva de quatro naipes!
Às primeiras, o nosso Ás só, sentiu-se sozinho. Mas, à medida que se foi erguendo e se fez ao caminho, foi encontrando outras cartas sem naipe, de cores que nem conhecia e que estavam interessadas em saber, do que é que depende... a vida de cada dia. Ases e Reis, Manilhas e Duques, Ternos e Quinas, aos magotes... cartas, que nunca tinham estado na manga e que sem que se tivessem dado conta jogavam um jogo em que todas eram indispensáveis.
Bem vistas as coisas, nem todo o losango é ouro, não há espada que sempre corte e há azares... que vêm por sorte!
3 comentários:
Pois é, ases são ases mas qualquer pequena carta do baralho pode ser trunfo! ;)
Excelente prosa.
É o que se vai passar amanhã, por o Ás fora do baralho. É a lei do jogo, neste caso da política.
o importante é acreditar! afinal, ainda vale a pena ter convicções e valores (pode não parecer, mas vale)!!! cada um vale por si o que, muitas vezes, todo o "naipe" junto não chega a valer.... eis o jogo da vida! excelente reflexão uivomania. um abraço
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