segunda-feira, outubro 13, 2008

Reedição

A invenção da garantia

Não se pode dizer que tudo tenha acontecido de repente...
Quando, uma parte da maioria sucumbiu esmagada pelo peso da estrutura dos andares de cima, num acidente não coberto pelo seguro - por via de uma alínea escrita em letra pequenina -, havia muito que alguns diziam ter ouvido o ranger das traves mestras e apontavam falhas, quer na estrutura quer no terreno em que esta, tinha vindo a ser edificada. Diziam até, que a estrutura em sí cheirava a podre e que a melhor solução seria, desmontá-la e construir uma outra de raiz, mais sólida e equilibrada.
A maioria  - entretida na própria azáfama da construção da estrutura -, não pensava assim, nem de outra maneira qualquer, evitando pôr de vez em causa o chão que pisava e aquilo que julgava ter adquirido!... Preferia, acreditar numa mão fechada cheia de um nada bafiento e num futuro, que de tão distante... lhe parecia brilhante! ...Diligente, insistia em se sentir candidata a um hipotético império, um degrau acima na pirâmide... escolhendo entrementes assobiar distraída, melodias fáceis de entrar no ouvido, emitidas a toda a hora em programas de entretenimento.
Lá no topo, os vendedores de sonhos dourados e de negros pesadelos, loucos, que se julgavam donos do mundo... não paravam de sobrecarregar a estrutura, atafulhando o topo com baús cheios de tesouros pesados trocados por bugigangas. Continuavam, a encher estantes com títulos de registos de propriedades inventados à pressão, para legitimar terrenos tomados de assalto! Passavam a vida, a anotar combinações secretas para os cofres que enchiam de diamantes feito riquezas e, a mandar cunhar moedas segundo a velha receita que detinham em segredo, da feitura das fortunas... sem nunca se cansarem de afirmar, que tudo estava no seu lugar. ...Por último, até admitiam; o edifício, até podia oscilar... estava concebido para oscilar! Por isso é que não desabava!...
A cada coice de culatra, a cada omoplata partida, a cada sonho desfeito feito drama, a cada tiro no pé, a cada Zé enterrado vivo por engano ou acidente... lá vinham os argumentos da sorte e do azar, da conjectura internacional, da subida ou da descida dos factores determinantes, da baixa produção dos produtores... e, a malta... claro, nem pensava uma segunda vez, chegava até, a não pensar de todo! Engolia patranhas uma após outra vez e ia mantendo com o suor do corpo que dava ao manifesto, os pilares podres no ar!...
...Quem sabe... talvez um dia, pudessem também cagar diamantes!...
Alimentada por ilusões, obediente, qual rebanho por medo de lobos maus, temerosa dos castigos eternos... por pecados inventados em sonhos e em noites escuras pintadas por loucos e ditadores, essa ingénua, essa estúpida e dócil de calculista, essa perversa de moralista... essa maioria, tão cruel quanto submissa... aceitava resignada "o seu destino", composto de licenças e multas, de cajadadas que agachada levava no lombo pregadas por pulso forte com frieza! Tudo na expectativa de manter válida a sempre vaga garantia (que se aproximava mais de uma promessa que tornava possível a esperança...), não da vida... mas da segurança! E essa, era dada, ou melhor... vendida, pelos vendedores de sonhos dourados e dos negros pesadelos!
...Por dez réis de mel coado, pago, por cada dia que vivia, a uma companhia de seguros instalada num andar de cima, a maioria, que em caso de morte poderia... ter a vida paga... assim andava, sem saber porquê, muito mais descansada...
De pouco valia, àqueles outros (que eram só alguns), tentarem convencer a maioria, a abandonar a estrutura edificada, a serem donos da sua própria vida e guardarem o mel coado e as batatas para darem aos filhos, aos amigos, ou para trocarem com os vizinhos... é que aqueles outros, procurando preservar um mínimo de decência, insistindo na coerência, não lhes davam garantias... e isso, para a maioria, era inconcebível.