quinta-feira, setembro 28, 2006

O figurante

À primeira vista ele existia. Circulava pelas artérias das catedrais de consumo, atento. Como um consumidor qualquer, num elegante e insuspeito passo lento... modo como fazia render o espaço e geria o tempo, evitando ser despeitado.
Excluído, sem perspectivas de contar para o que quer que fosse, sem o poder de consumir o que quem risca a realidade determina ser o mínimo aceitável... sabia, que o que andava por aí a fazer, era esconder a solidão e resistir à tentação, de cumprir a existência como cão sarnoso abandonado.
Volta e meia, meia volta dada como quem se lembra de repente de ao que ia... parava frente a uma montra e simulava um olhar arguto, com que encenava um interesse quase cínico. Olhava sem ver nada - absorto em lutas antigas em que tinha atingido monstros gigantes, moinhos... defendido donzelas, ofendidos... - e, no estilo mais digno que o reumático lhe permitia, trocava as voltas a improváveis observadores que gostava de imaginar, afastando-se desdenhoso, como quem nada lhe serve.
...Vasculhado o piso Zero, dirigia-se a uma escada rolante e deixava-se levar até ao topo. Altivo, sobrolho franzido a disfarçar a penúria, queixo empinado a disfarçar o vazio no peito, uma vez chegado ao piso Um... parava! Reflectia em nada... breve, e escolhia o rumo como quem ainda espera encontrar algo e sabe por onde começar.
Depois, era o passo comedido com medo de encolher o espaço, o cuidado de não parar em frente à mesma montra, de evitar dar a entender o fingimento de procurar alguém numa esplanada ou de não entrar com o olhar expectante segunda vez, no mesmo restaurante...
Por vezes, examinava a lista afixada na entrada com a minúcia de quem tem muito por ter vindo a poupar e, com o vagar de um bom apreciador, elegia um prato, a sobremesa, uma aguardente velha... e degustava lentamente num lugar qualquer da mente... através de um fenómeno misterioso que não sabia, nem queria, explicar! Chegava até a arrotar!...
Em seguida, a caminho dos cartazes que anunciavam os filmes em exibição, se lhe emanava da alma o abandono a que estáva votado... tiráva num repente o telemóvel do bolso e ao fingir ligar a alguém, ordenava ao despertador que - daí a pouco - fizesse as vezes de quem lhe ligasse. ... Toque a soar, atendia, auscultava, aguardava, impacientava-se, volvia a um e outro lado incomodado, consternado pelo assim tornado evidente lápso de memória pelo que teria feito alguém esperar. Improvisadas explicações, desculpas, lá continuava, aliviado. Mão na anca, na testa a arquitectar, como quem quer que tudo fique bem claro: Estou! Está?... Sim sim. Não! Sabes como é... para se encontrar alguma coisa de jeito... é um martírio!... Tá bem. Tudo bem. Não te preocupes... eu passo por aí. Podes contar comigo!... OK! Então, até logo! ...Beijinhos!...
Nunca ninguém desconfiou de nada, nem nunca sequer alguém reparou.

2 comentários:

Nevrótica Aluada disse...

Momentos ilusórios que recompensam a solidão, do outro lado tudo o que se quer e o que nunca se pode. Tristes enganos de vida que cada vez mais existem na multidão das cidades.

uivomania disse...

Os muros enquanto paradigma de cidades e territórios demarcados, dividem e isolam as pessoas. Daí a tentativa de alguns arquitectos para eliminar ao máximo essas barreiras e criar espaços mais amplos e abstractos. O Bush é que não vai nessa! Gosta mais do concreto.