sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Um desafio sempre actual

Joaquim Pedro de Oliveira Martins, em jeito de conclusão, escreve na última página do seu livro "Sistemas dos mitos religiosos" o seguinte:
A impiedade do coração é a fraqueza no braço e o látego no dorso. Uma sociedade materialista em que os homens limitam a vida aos anos de gozo, perdendo o sentimento do nexo do passado e da responsabilidade para com o provir, abandonando-se ao requinte e ao delitantismo como os atenienses de outro tempo, ou à brutalidade da riqueza com que se paga o fausto e as mulheres, como os romanos do passado; uma sociedade surda pelos gemidos dos que sofrem, pelas vozes dos que clamam, está condenada a cair. No gozo vai-se a força, no optimismo ingénuo pelas «maravilhas da civilização» perde-se o sentimento do que a civilização é, identificando-a exclusivamente com o luxo de artes mercenárias ou com a grandeza de obras apenas utilitárias. Perdido o norte, obliterada a moral, ignota a caridade, a vida torna-se numa luta sem nexo, e cada homem para o seu semelhante, hostis, inimigo, como era o estrangeiro na Roma bárbara. A ciência generalizada, e desmoralizada, é um instrumento grave na mão de homens bestificados: à navalha sucede o revólver, ao revólver os venenos subtis (estriquinina, aconitina), aos venenos quem sabe? o raio produzido por pilhas portáteis, quando a electricidade tiver dito quanto pode. Matar é a regra de todo aquele que não soube viver.
Amplifique-se o quadro que nos oferecem as grandes cidades com os seus exércitos de proletários, as opulências vulgares dos seus ricos, os desvairamentos das suas Bolsas, os seus bandos de facínoras, as suas plebes depravadas, a sua promiscuidade repugnante: amplifique-se, absorvendo a população ainda ingénua dos campos, e talvez não parecam quiméricos os receios de uma nova crise como a da Antiguidade, que também ouvira Platão e obedecera a Marco Aurélio. As oligarquias dos nossos ricos pedirão como as antigas uma espada que as defenda das plebes miseráveis também ávidas de gozar e a espada será um açoite, esporas e um freio - se por ventura houver janízaros bastantes para esmagar as multidões dos novos bárbaros. Chegarão a ver-se na Europa exércitos de berberes, de índios, de turcos assoldados pela França, pela Inglaterra, pela Itália, pela Rússia? O caso não seria novo, nem a solução imprevista.
Mas no dia em que tal sucedesse, a Europa acabaria, e sobre as ruínas de uma civilização algum futuro Dante veria no ondear fúnebre das multidões barbarizadas
Le genti dolorose
Ch' hanno perduto' l ben dello'ntelletto

Oliveira Martins, viveu entre 1845 e 1894.

3 comentários:

armando s. sousa disse...

Este texto com pequenas adaptações adequa-se plenamente à nossa sociedade ocidental no geral, e à União Europeia no particular. A Europa já foi invadida por esses exércitos, não no sentido militar, de turcos, berberes, indianos, chineses.Extremamente actual este texto Oliveira Martins, não fosse caso de ter sido escrito no século XIX.

pindérico disse...

"Perdido o norte, obliterada a moral, ignota a caridade, a vida torna-se numa luta sem nexo..."

Para lá caminhamos!!!

boavida disse...

Oliveira Martins, viveu entre 1845 e 1894...mas ainda ninguém o levou a sério. E é urgente!