Foi com o sacrifício de várias gerações, que aquela moradia tinha vindo a ser mantida propriedade da família e, embora estivesse de certa forma degradada, continuava a ser, um motivo de orgulho para a maioria.
A história do antepassado destemido que a mandara construir, passava de pais para filhos e, à medida que ia sendo contada, adquiria novos contornos. Um ou outro acontecimento podia desaparecer ou nascer, consoante a imaginação de cada um, a geração e o jeito que esse retoque poderia dar no momento.
A casa, com a frente virada ao mar, implantada em terreno fértil, tinha nas traseiras hortas e pomares que confinavam com bosques e matas espalhadas por montes e serranias que, adquiriam tonalidades quase mágicas. ...Um sítio, em que qualquer um poderia viver feliz, não fora a volúvel tonteria de querer ter a garantia, de poder chegar, justamente ao lugar em que não se está, de vir a ter o que não se tem e, por aí além...
Um dia, chegou-lhes ao lugar, um artista... um verdadeiro ilusionista, com uma mala cheia de truques e magias a que ninguém resistiu...
Começou por lhes falar do saldo contabilistico e do saldo disponível...
Explicou-lhe o que era um número negatívo... uma conta a descoberto e as suas respectivas alcavalas, um cheque, uma comissão de atraso, um imposto do selo, uns juros sobre o empréstimo, uma compra com o dinheiro que se presume poder vir a ganhar...
Falou-lhes de conceitos e pôs-lhes notas na mão em troca de espaço no lugar. ...Na prática, comprou uma concessão, para explorar potencialidades com que nunca tinham sonhado! Montou uma banca, atirou um foguete ao ar e deu-lhes a provar salmão de tanques longuínquos, doce de morango com sabor a banana, água com várias cores e sabores, frutas lustrosas e sem bicho, ensinou-lhes regras novas para jogar à cabra cega, ao toca e foge... e, instalou nas traseiras - lá no lugar -, uma fábrica de fazer dinheiro em que pôs todos a trabalhar!
Pagava-lhes com notas e, em troca destas, tanto lhes vendia botas que se usavam em Paris, como o salmão que lhes tinha dado a provar ou, relógios da China que davam música... e, em momentos de maior amargura, adoçava-lhes a boca com doces de uma fruta que sabia a outra!...
Ensinou-lhes o que era o PIB, deu-lhes um cartão e atribuiu a cada um um NIB, promoveu os mais velhos e influentes a VIP, explicou a todos as virtudes do caviar fazendo-lhes crescer água na boca e, quando lho quiseram comprar, concedeu empréstimos celebrados em papel timbrado, contra hipotecas de parcelas da propriedade...
Entretanto, cada vez menos gente amanhava a terra! Chegavam a casa, cansados de dar à manivela na máquina de fazer notas e, por outro lado, em função dos preços a que o ilusionista lhes vendia os produtos que arranjava noutros lugares, tinha deixado de ser rentável fazer o que quer que fosse, para além de trabalhar nesta nova actividade tão lucrativa... De qualquer modo, os terrenos, cada vez mais sobrecarregados de detritos, produtos tóxicos, restos de tintas usadas na feituras das notas... tornaram-se estéreis e, à medida que a fábrica se expandia, o espaço que restava mal dava, para plantar uma couve que fosse!
Uma tarde de pescaria começou a revelar-se impossível, por falta de tempo - que era todo tomado a trabalhar, para pagar juros, comissões e prestações da hipoteca - e, na verdade, ao preço que o salmão lhes chegava à mão, compensava muito mais comprarem-no ao ilusionista, do que pescarem robalos no mar e apresentá-los no prato grelhados... particularmente aos miúdos, que só de os verem ficavam enjoados e infelizes, depois de terem ouvido o ilusionista falar, nas delícias do mar, sem espinhas, feitas de farinhas nutritivas com sabor a lagosta suada e com forma de monstros divertidos.
O simples e antigo ritual de apanhar frutos do bosque, caiu em desuso, perante a oferta das suas polpas finas, açucaradas, vendidas em embalagens atractivas coloridas, com as quais se desenrolavam vários sorteios.
Um dia... o ilusionista, que na prática se tornara em quem mandava, por ter ficado na posse do terreno a ele hipotecado, importou uma máquina de fazer notas semi-automática e, mandou para casa metade dos trabalhadores que se viram forçados a pedir dinheiro emprestado para pagar as dívidas que tinham criado enquanto tinham trabalhado a dar à manivela, mas, como já não estavam inscritos, viram os seus pedidos recusados e os seus cartões outrora dourados foram por magia transformados em pó!... Ficaram sem NIB, deixaram de ser VIP e nunca mais puderam comprar salmão vindo de tanques distantes, ou sumo de laranja a saber a framboesa...
A família, começou a olhá-los de lado, porque a bem dizer... desempregados e mal habituados, eram um fardo! Eles, viram-se forçados a entrar num programa de reciclagem instituído pelo artista, em que aprendiam a não existir e no qual foram bem sucedidos!
Em menos de nada, graças aos avanços tecnológicos, a máquina semi-automática foi substituída por uma outra, totalmente automática e todos os membros daquela família, ingressaram nesse programa de reciclagem, com excelente aproveitamento!
Hoje, embora o lugar esteja muito degradado, tóxico e viscoso, a produção de notas duplicou e a economia do lugar é das mais fortes do mundo! Quanto à antiga família, se bem que se saiba que andam por ali, não são vistos, nem tidos... nem achados...
Quanto ao resto, tudo está entregue a uma máquina, altamente sofisticada que faz notas como que por artes mágicas e, o ilusionista, continua a coleccionar propriedades e, a emprestar as notas a quem se apanha a desejar, comprar-lhe as botas que ele vende e que se usam em Paris.
5 comentários:
Um verdadeiro...artista!!! E viva a máquina...enfim!!!
Já tinha saudades. Jinho, BShell
Mas o ilusionista que se cuide, porque até as suas artes têm fim!
Boa Pindérico! A idea mais perspicaz é essa... e caminhar nesse sentido, que é um caminho cheio de obstáculos, para todos, até para os coxos, que, infelizmente, são a maioria.
Infelizmente cada vez mais se assiste aos malabarismos desses ilusionistas. Cada vez mais temos famílias endividadas para pagar o tal salmão das terras distantes. Cada vez mais se assiste passivamente ao caos que se instala na economia nacional. Má gestão dos privados, ou aliciamento dos bancos que, sem dó nem piedade, certo dia chegam e cobram, cobram 100 vezes mais aquilo que emprestaram.
Bela exposição da realidade Uivo, gostei de te ler, aliás como sempre :)
Parabéns e besitos
LOL Adorei
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